sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Memórias do Inferno

Art Spiegelman, explora, em quadrinhos, todo o horror do Nazismo através das memórias de um sobrevivente, seu próprio pai, e cria uma obra densa e verdadeira, fazendo o leitor perder o fôlego em vários momentos.





Como conseguir retratar a crueldade da Segunda Guerra Mundial através de quadrinhos, sem usar de uma arte realista e com algo que a fizesse se destacar das demais obras semelhantes? Talvez Art Spiegelman tenha respondido a pergunta quando concebeu Maus – A História de Um Sobrevivente, um dos relatos mais crus sobre a perversidade humana e sobre o referido momento histórico, palco de uma das filosofias políticas mais terríveis que o mundo conheceu: o Nazismo.

Maus (rato, em alemão) é um livro em quadrinhos. Uma graphic novel (ou “novela gráfica”), para ser mais exato. Quando foi lançado no Brasil, numa edição compilada (a obra foi originalmente publicada em dois volumes), os quadrinhos em suporte livro eram algo meio novo no país. Coisas como Persépolis, Watchmen, Cachalote, Scott Pilgrim, Retalhos e as coletâneas de Charlie Brown, por exemplo, só ganharam o gosto do público com o tempo. Quando se pensava na expressão história em quadrinhos, automaticamente se pensava numa revista, de não mais que 100 páginas, talvez. Hoje em dia, os quadrinhos viraram artigo de luxo, ganharam respeito no mercado – o que é ótimo, por sinal! (Só para lembrar, Maus ganhou o Pulitzer em 1992, prêmio que honra trabalhos de excelência nas áreas de jornalismo, literatura e música) Cada vez mais editoras se interessam em lançar obras estrangeiras e os autores nacionais tem ganhado mais espaço, com recepção positiva de crítica e público, como o autor da tirinha eletrônica Malvados, André Dahmer.

Portanto, com toda essa virada nas hq’s (e olhe que estamos falando de uma virada que ocorreu há pouco mais de cinco anos!), imagine o impacto quando alguém se deparava com Maus na prateleira. O livro, apesar de tratar de um tema tão pesado, teve uma sacada que alguns talvez nem acreditem ser possível: Spiegelman retratou todos os seres humanos com traços animais. É mais ou menos como nos desenhos da Disney, com a diferença que em Maus não há nenhuma infantilidade nisso. Os judeus são ratos, os alemães, gatos, e os americanos, cães. Outras nacionalidades/etnias aparecem na obra, como poloneses porcos, um francês sapo e uma cigana borboleta. Essa escolha foi uma jogada genial de Spiegelman, pois tanto suaviza como aprofunda a narrativa – pensar nos judeus como ratos perseguidos pelo inimigo natural, os gatos nazistas, soa algo terrível, não acham?

"Amigos? Seus amigos?... Se você trancar eles num quarto sem comida por um semana, aí você ver o que são amigos!..."


Em Maus, Spiegelman narra a saga de seu pai, Vladek, judeu polonês, desde antes da guerra, prestes a conhecer sua primeira esposa (e grande amor) na Polônia, até alguns anos após o fim da guerra. No meio disso, vemos a ascensão do Partido Nazista, o início da perseguição aos judeus, a guerra invadindo a vida dos europeus; miséria, fome e doenças por toda parte; as estratégias às vezes inacreditáveis de sobrevivência e, pasmem, momentos de poesia e doçura. Sim, pode existir doçura numa guerra, quando o melhor do ser humano consegue aflorar mesmo em meio a tanta decadência e sofrimento.

Esse é o outro diferencial de Maus: o humano. Assim como conhecemos de perto (um pouco perto demais, eu diria, dentro do lapso temporal que nos separa do período de 1939-45) as barbaridades cometidas não só pelos alemães nazistas como também judeus e não-judeus que, ora por falta de caráter, ora pelas circunstâncias, praticaram atos recrimináveis para escapar das agruras do regime de Hitler, também conhecemos personagens capazes de encontrar esperança onde não havia mais nada a perder. Pessoas quase mágicas, que talvez sequer imaginem o enorme bem que fizeram com gestos tão simples. 




O traço simples, porém forte, de linhas expressionistas, combinada a narrativa sincera e carregada de significados, joga o leitor numa tensão absurda e irresistível, aonde se vai das lágrimas ao riso, com direito a arrepios no intermezzo, seja de medo ou de alívio. Maus é o tipo de leitura em que, uma vez aceito o compromisso, é preciso consciência de que não será só mais um livro na sua vida. É o relato de alguém que foi ao inferno e voltou, com todas as cicatrizes como prova. E algumas delas ainda vão sangrar bem na sua frente...

Maus – A História de um sobrevivente
Autor: Art Spiegelman
Tradução: Antônio de Macedo Soares
Preço: R$45,50
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2005

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-A fala de Vladek, destacada no meio do texto, parece estar errada, mas não está. A edição da Companhia das Letras preferiu dar um tom de sotaque alemão às falas de Vladek, algo muito mais condizente com a situação dele: um homem maduro que tinha o alemão como língua nativa e que se refugiou nos EUA.


-Todas as figuras são de uma edição mais antiga, em dois volumes como na original, pela editora Brasiliense.


-Nem preciso dizer que tenho Maus já há algum tempo e que é um dos meus livros favoritos, não é?

-E a título de comentário, Maus teve problemas para ser publicado na Polônia... Adivinhem por quê?

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