Von Trier envereda pela ficção científica para explorar o mal estar das relações humanas e a nossa pequenez diante do inevitável
Não é qualquer um que pode se dar ao luxo de ser Lars Von Trier. Diretor instigante, de filmografia contestadora, iconoclasta por excelência, ele foi protagonista de alguns dos momentos mais polêmicos e transformadores do cinema. Foi um dos cabeças do Dogma 95, movimento estético-político que chacoalhou os alicerces da indústria cinematográfica ao se opor às grandes produções, recorrendo a uma linguagem mais direta e sincera, similar ao lema do Cinema Novo (“uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”). A câmera na mão era literal, a qualidade da imagem lembrava filmes caseiros e as locações passavam longe dos estúdios.
Mais recentemente, Von Trier foi protagonista de um dos maiores constrangimentos dos últimos anos em Cannes. Com declarações que flertavam com o nazismo (chegou a afirmar, ipsis literis, que entendia Hitler), Von Trier terminou banido do festival, considerado persona non grata e conquistando a antipatia de muitos nomes do feudo cinematográfico.
No entanto, para os espectadores, aqueles para quem realmente importa fazer cinema, Von Trier parece ter saído incólume de Cannes. Talvez, revigorado. Melancolia (Melancholia, 2011), que era favorito no festival e só não saiu consagrado de lá por conta da boca grande do diretor, responde de forma excelente às expectativas do público.
Mais recentemente, Von Trier foi protagonista de um dos maiores constrangimentos dos últimos anos em Cannes. Com declarações que flertavam com o nazismo (chegou a afirmar, ipsis literis, que entendia Hitler), Von Trier terminou banido do festival, considerado persona non grata e conquistando a antipatia de muitos nomes do feudo cinematográfico.
No entanto, para os espectadores, aqueles para quem realmente importa fazer cinema, Von Trier parece ter saído incólume de Cannes. Talvez, revigorado. Melancolia (Melancholia, 2011), que era favorito no festival e só não saiu consagrado de lá por conta da boca grande do diretor, responde de forma excelente às expectativas do público.
Von Trier ousa em nos entregar uma ficção científica que nos faça pensar, coisa que poucos filmes do gênero conseguiram (como “2001 – Uma Odisséia no Espaço”, de Kubrick, e “Gattaca – A Experiência Genética”, de Andrew Niccol), ao mesmo tempo em que se dispõe a criticar o vazio dos ritos sociais, a esterilidade emocional do contemporâneo e a fragilidade humana diante do inexorável.
“Melancolia” narra a chegada do planeta homônimo e até então desconhecido, que está em rota de colisão com a Terra, e o quanto esse fato está afetando as pessoas. Dividido em duas partes claramente demarcadas (não só pela narrativa, mas também pela fotografia e pela ambientação), somos apresentados às duas personagens nucleares da trama: Justine (a bela Kirsten Dunst, que levou o prêmio de melhor atriz em Cannes 2011), entregue a uma depressão tão angustiante que nem mesmo no dia do seu casamento ela consegue esboçar felicidade sincera; e Claire (Charlotte Gainsbourg, ótima, que também atuou em “O Anticristo”), a irmã sensata e ordeira de Justine, cuja necessidade de estar preparada para tudo desmorona diante da catástrofe anunciada.
“Melancolia” narra a chegada do planeta homônimo e até então desconhecido, que está em rota de colisão com a Terra, e o quanto esse fato está afetando as pessoas. Dividido em duas partes claramente demarcadas (não só pela narrativa, mas também pela fotografia e pela ambientação), somos apresentados às duas personagens nucleares da trama: Justine (a bela Kirsten Dunst, que levou o prêmio de melhor atriz em Cannes 2011), entregue a uma depressão tão angustiante que nem mesmo no dia do seu casamento ela consegue esboçar felicidade sincera; e Claire (Charlotte Gainsbourg, ótima, que também atuou em “O Anticristo”), a irmã sensata e ordeira de Justine, cuja necessidade de estar preparada para tudo desmorona diante da catástrofe anunciada.
Abertura repleta de momentos deslumbrantes visualmente |
As alegorias envolvidas no filme são muitas, a começar pela abertura, uma das mais lindas que já vi. A combinação entre a passagem de “Tristão e Isolda”, de Wagner, e a câmera super lenta (que faz parecerem rápidas aquelas que já estamos acostumados a ver na TV) causa um impacto estético soberbo, não apenas encantando os olhos, mas também invadindo a alma do espectador. É a exata sensação do apocalipse: é impossível escapar. A alegoria mais óbvia talvez seja justamente essa: a melancolia, que dá nome ao planeta fictício, é muito maior do que imaginamos, causando-nos medo proporcional, e por mais que tentemos, não seremos capazes de escapar dela. No entanto, teremos duas formas de lidar com ela. A primeira é a resignação, após todo o sofrimento, em que sairemos mais fortes, mais maduros. A segunda é o descontrole, que nos destrói antes mesmo do inevitável chegar.
Justine (Dunst) e Claire (Gainsbourg): dueto impecável |
A veia iconoclasta de Von Trier se manifesta especialmente na primeira parte de “Melancolia”, a que narra a festa de casamento de Justine. Nela, vemos a acidez com que o diretor disseca as relações familiares e os ritos sociais inerentes ao convívio humano. A cena mais amarga, certamente, é a que o cunhado de Justine, John (Kiefer Sutherland), chama a sogra, Gaby (Charlotte Rampling) para o momento dos noivos cortarem o bolo de casamento. Eis que então Gaby dispara toda as mágoas que sente do mundo em simples quatro frases, revelando o quanto somos hipócritas em dar grandes significados a coisas tão bestas enquanto ignoramos (ou simplesmente perdemos) outras, muito mais elevadas.
É curioso como toda a narrativa se desenvolve num espaço relativamente pequeno – uma mansão de campo, de arquitetura clássica – ao mesmo tempo em que é permeada por uma universalidade de temas. Uma junção perfeita entre macrocosmo trágico (o apocalipse astronômico) e microcosmo desiludido (a profunda depressão de Justine e o desespero de Claire).
É curioso como toda a narrativa se desenvolve num espaço relativamente pequeno – uma mansão de campo, de arquitetura clássica – ao mesmo tempo em que é permeada por uma universalidade de temas. Uma junção perfeita entre macrocosmo trágico (o apocalipse astronômico) e microcosmo desiludido (a profunda depressão de Justine e o desespero de Claire).
Quanto às atuações, todo o elenco está de parabéns. Dunst e Gainsbourg se revelam uma bela dupla, com a oposição Justine x Claire bem delineada pelas duas atrizes. Sutherland, depois de todo o sucesso do seriado "24h", parece ter aprendido a atuar, o que é muito bom para ele. E o restante, mesmo em aparições curtas, não decepciona.
Já com relação à técnica, é impossível não notar o ranço do Dogma 95 na câmera propositadamente tremida, inconstante, e nos cortes bruscos que lembram uma Novelle Vague revisitada. São tantos que, por vezes, a sensação de vertigem é inevitável. É uma escolha que cansa um pouco e que torna o desenrolar das cenas meio confuso, especialmente na primeira parte, mas nada que faça menor esta obra tão aguardada.
Com todos essas características a favor, Von Trier sairá mais uma vez aclamado, com um filme denso em termos estéticos, temáticos e narrativos, disparando petardos contra as tradições que (inutilmente?) insistimos em manter e na fragilidade da raça humana diante de forças superiores e incontroláveis.
Melancolia
Nota: 9.0/10
- x - x - x -
(Obs: Melancolia só não levou um 10 porque mudei os meus conceitos para atribuir notas aos filmes. Apesar de ainda muito subjetivo, tentei dar uma "enxugada" no que levo em conta para pontuar e na forma como esses fatores se traduzem em números. Na minha forma anterior, seria um 10, com certeza.)
2 comentários:
PÔRRAN...
não precisava xingar a mãe de Kiefer né?
"aprendendo" foi foda. =P
no mais, excelente texto, como sempre.
fiquei até com um pouco de vontade de ver, #confesso
=*
O texto está realmente excelente.
Um dos melhores filmes do ano, sem dúvida. Não sei se seria exagero chamá-lo de melhor porque "Cisne Negro" foi devastador. As imagens iniciais de Melancolia são bem impactantes (o encerramento também) e "Tristão e Isolda" fez com que ficassem ainda mais poderosas, creio que o filme me ganhou naquele momento.
Fiquei surpreso com os bons desempenhos de Kiefer Sutherland e Kirsten Dunst. Nada como um grande diretor para fazer os atores funcionarem.
A bronca para o filme é aquele rolo todo que aconteceu em Cannes. Isso talvez ofusque a qualidade desse longa.
Novamente, eu o felicito pela crítica.
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