terça-feira, 3 de maio de 2011

Para onde vão os deuses?


Sunset Boulevard. Podia ser apenas mais um endereço em Hollywood, uma estrada infestada por mansões de ricaços da indústria cinematográfica. Um lugar idílico, tranquilo demais para se viver do mais puro ócio que a riqueza excessiva pode proporcionar. Mas Billy Wilder decidiu que seria uma perfeita cena de crime. Tanto que já abre seu majestoso “Crepúsculo dos Deuses” com um cadáver boiando na piscina.

Curiosamente, o cadáver é o protagonista do filme, que oscila graciosamente entre o noir charmoso e o melodrama rasgado. Nosso herói é Joe Gillis (William Holden), um roteirista esforçado, porém sem sucesso, e que nos narra o imenso flashback dos fatos que levaram a sua morte, como manda um bom noir. O pobre homem, cujas dívidas o levam a artimanhas desesperadas, recorre a todas as possibilidades que conhece para postergar o fracasso definitivo. Depois de muito vai e vem, ele se vê fugindo da policia em plena Sunset Boulevard. Até que um pequeno acidente com o pneu do seu carro o introduz a uma parte do mundo que o tempo esqueceu.

Aqui, Hollywood começa a ser cindida em territórios opostos. De um lado, a lógica do novo cinema, sonorizado e colorido, moderno, com estúdios grandiosos que começam a despertar como gigantes capitalistas a engolir talentos, o progresso inevitável do caráter urbano. Do outro, uma mansão decadente, “uma casa velha como a velha de Grandes Esperanças”, símbolo de um poder enferrujado e barroco, pertencente a uma estrela apagada do cinema mudo.

Gloria Swanson - um show à parte.
Eu disse apagada? Não, não senhor, que Norma Desmond não me ouça, ela ficaria furiosa! Outrora uma diva do cinema, Norma (Gloria Swanson) vive um triste e solitário fim de carreira, porém sem perder a aura de grande estrela, contando apenas com o apoio de Max (Erich Von Stroheim), seu fiel mordomo e protetor. Naquela mansão desolada, com a piscina já cheia de ratos, é que nosso herói esfarrapado irá encontrar a solução para seus problemas financeiros.

Gillis vê a oportunidade única de usar seus talentos como escritor e tirar o pé da lama, numa só tacada. Norma, pretendendo voltar aos holofotes, o contrata para reescrever um roteiro seu, um projeto que ela vem escrevendo há anos e onde ela fará o papel principal. Para executar tal tarefa, ela convence Gillis a morar em sua mansão. Daí em diante, Norma leva nosso herói literalmente no bolso. Sua liberdade acaba no exato momento em que “assina” o pacto com o diabo. Aliás, mais certo seria vampira ou fantasma. Norma guarda o resquício sobrenatural das criaturas amaldiçoadas, presas a uma vida passada que não oferece nenhum futuro. Doente de si mesma – sua casa é repleta de quadros de quando era (realmente) famosa – Norma vive de interpretar a si própria, num reprisado momento de sucesso.

É em Norma que os elementos do melodrama mais se constituem, graças à atuação propositadamente exagerada de Gloria Swanson. As expressões marcadas demais e o gestual antinatural são celebrações à estética do cinema mudo, onde os atores interpretavam caricaturalmente, já que o público precisava entender o que se passava na tela sem uma única troca verbal. Quando está feliz, Norma exulta em cena, pura soberba. Quando triste, se afoga em lágrimas e pedidos de perdão inimagináveis. “Grite comigo, me bata, mas não me odeie”, ela chega a dizer para Gillis, num momento crucial da trama.

Quanto a Gillis, o contraponto noir, ele é um herói controverso. Foge inclusive do estereótipo do detetive, tão caro ao gênero. Apesar de guardar características do noir, como o cinismo e o sex appeal, Gillis está mais para o malandro, se aproveitando da loucura de sua “mecenas”. É curioso ver como Wilder constrói sua narrativa através de personagens tão “cinzentos”, onde os limites do certo e errado não caem bem para nenhum deles. Nem mesmo a coadjuvante Betty Schaefer (Nancy Olson) escapa, uma profissional de bastidor que se apaixona por Gillis ao longo da trama, estando noiva de um ator que é grande amigo do roteirista.

O elenco central do filme (esq. para dir.): Nancy Olson, William Holden, Gloria Swanson e Erich von Stroheim
 
Retomando a personagem de Norma, ela é apenas um dos detalhes de outra forte característica desta obra-prima de Billy Wilder: a metalinguagem crítica do cinema. A todo o momento somos lembrados que o filme se passa em Hollywood, a Meca do cinema, mesmo que poucas vezes se faça uso desse distrito de Los Angeles como cenário. Talvez uma estratégia compulsória, já que Hollywood, diferentemente de New York, Paris, Londres e Rio de Janeiro, não tem uma marca visual representativa, algo que nos traga à memória só de olhar (exceto pelo famoso letreiro branco em Mount Lee, que por pressão popular, escapou de ser demolido pela especulação imobiliária). Hollywood está lá nas mansões caras e aristocráticas, nos estúdios da Paramount, nos cenários falsos dos filmes. A urbanicidade de Hollywood é rara e indistinta, restando a ideia (ilusória?) de que todos na cidade são “gente de cinema”, e portanto a própria cidade é um enorme cenário a se realizar apenas nas películas.


A metalinguagem de “Crepúsculo dos Deuses” é tão forte que até figuras tradicionais do cinema na época aparecem interpretando a si mesmos, como o diretor Cecil B. DeMille e o ator Buster Keaton. Porém, Wilder usa da metalinguagem não apenas para um cinema do “como fazer”, mas para criticar a crueldade industrial que já naqueles tempos afetava este campo artístico. Muitas estrelas do cinema mudo, assim como Norma, foram esquecidas na era seguinte, tornando-se apenas páginas na história. Páginas respeitáveis, mas que não tiveram o gran finale digno. A cena que melhor ilustra esse olhar da indústria cinematográfica sobre si mesma é a que Norma visita um dos estúdios da Paramount para ter uma conversa com DeMille. Enquanto está sentada numa cadeira, esperando, um holofote é colocado sobre ela. Como mágica, os atores e técnicos presentes no local percebem que estão diante de uma lenda vida de seu tempo e de sua arte. Correm ao seu encontro, para idolatrá-la, o reconhecimento tácito de sua contribuição para o cinema. Mas tirada a luz, o encanto se acaba, os admiradores retornam aos seus afazeres. A deusa perdeu sua divindade. Restou uma pobre mortal, iludida, descartada pela arte que tanto ama.

Numa trama onde há espaço para o melodrama e o noir conviverem em certa harmonia, com grandes toques metalinguísticos, podemos dizer que Wilder dirigiu muito bem seu filme. “Crepúsculo dos Deuses” é uma obra inteligente e marcante, do tipo que faz falta no cinema contemporâneo mais comercial. Ao mesmo tempo em que homenageia o passado da Sétima Arte, critica sem medo os rumos do novo cinema que se operava no pós-guerra. Seu desfecho é no mínimo perturbador, onde uma Norma arrasada mentalmente desce as escadas, vivendo um simulacro de seu trabalho. Agradecendo a presença de todos, inclusive aos espectadores do filme, se referindo a aqueles que estão no “escuro da sala” ao apontar para nós, Norma se aproxima da câmera. E nesse close up, ela se esvai, indo de encontro ao seu crepúsculo derradeiro. Mas para onde vão os deuses após seu crepúsculo? Para dentro de nós, viver eternamente em nosso imaginário, como lembranças de uma era mitológica.

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Resenha para a disciplina de Cinema e Cidades, ofertada para o curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco e que estou pagando como eletiva. Para ver textos dos outros alunos da disciplina - além de produções mais antigas - é só acessar o blog Patagonia.

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